quinta-feira, 1 de março de 2012




Vejam o meu  caderno de receitas. Eu o iniciei quando estava com quase 16 anos já me preparando pra casar. Também está velhinho, sujo e rasgado como o do texto que vocês lerão agora. Junto às receitas ele guarda muitas lembranças, saudades e sonhos.





Receitas da saudade


(Maria de Lourdes Figueiredo Sioli)

Meu caderno de receitas estava ali, à minha espera para que o folheasse mil vezes como sempre, até escolher a velha e conhecida torta ou o costumeiro pudim para a ceia de Natal. Como estava velho, com as folhas despencadas e até sujas por respingos de algum bolo... Não me lembro quando o encapei assim com o pano verde, onde flores coloridas de feltro estão agarradas até hoje em horrível buquê... 

Sempre gosto de folheá-lo, como se à procura de algo, indefinível, que me leva ao passado, à cozinha da casa da vovó que nas datas como as de hoje, fervilhava! Vejo o lombo saindo do forninho a lenha, a farofa molhadinha, feita no seu suco, o frango ensopado ou ao molho pardo, o manjar branco, rodeado pelas ameixas pretas que dançavam na calda amarelada... Não consigo mais "ver" a fisionomia de todos, mas quase sinto o cheiro delicioso que corria pela casa e a animação da criançada pensando na missa do Galo e no presente que chegava depois dela. Uma vez me disseram que também havia missa da galinha e dos pintinhos e que nessa, as crianças podiam ir... 

Leio as receitas devagar. Pudim do tio Chico, quem foi mesmo ele? Fala em garrafas de leite! Que garrafa seria essa meu Deus! De repente percebo a ortografia antiga, as medidas fora de moda... As receitas também envelhecem, saem da moda e são esquecidas num livro qualquer... Qualquer não! No meu livro, onde sempre serão lidas...

Pudim da tia Dalva; maionese da tia Dulce, molho da tia Cyra. Que dia mesmo foi  que copiei  isso? Que mistério o funcionamento da nossa memória! Vejo-lhes o rosto, os cabelos, ouço-lhes a voz ditando-me as receitas que acabara de provar e aprovar com certeza.

Fecho o livro. Hoje é Natal, não é dia para tristezas. Vou mandar encadernar meu livro, tirar esta capa verde, as horríveis flores e escrever na frente "Receitas da Saudade"!

____________________

Em 2003 estive em Itu - SP e ganhei da Dra. Maria Lúcia de Marins Caselli a "Revista da ACADIL" (Academia Ituana de Letras) do ano de 2002. Gosto muito dos artigos contidos nela, principalmente esse que postei pra vocês.

Não tive a oportunidade de conhecer a autora, mas a vejo como todas nós mulheres que valorizamos as coisas simples, o aconchego do lar misturado à preservação da cultura.
Parabéns Maria de Lourdes! 


   

1 comentários:

Maria Reciclona disse...

Mazza, que texto lindo para ilustrar imagem do seu caderno de receitas. Tenho aqui alguns colecionados pela minha mãe ao longo de seus 80 anos vividos. Era culinarista e eu amava ficar olhando para seu rosto enquanto folheava seus livros e cadernos de receitas. Ela os lia com o olhar e fisionomia apaixonada, como se lesse pura poesia. Ai como isso também me dá saudade...
Um abraço, minha amiga querida.